quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Gurgel mal assombrado atormenta bêbado em Paraty

"Exe carro é mal axombrado, tem fantaxma lá drento, ele piscou o farol prá mim..." Até eu ouvir essa frase nem imaginava o que estava acontecendo naquela tarde chuvosa em Paraty. Presta atenção...


Meu Gurgel X-12 ficou estacionado em frente a um boteco na Rua dos Coqueiros. Passou lá o dia inteiro e, enquanto isso, eu e o Marco Aurélio – um segundo irmão que a vida me deu, navegamos na escuna curtindo a baia de Paraty. Fim de tarde e sempre caia aquela tempestade de lavar a alma enquanto o barco ancorava no pequeno cais. O sol caindo trás das montanhas iluminava as nuvens carregadas, um cenário perfeito de fim do verão.

A chuva não incomodava, nossos passos rápidos ecoavam nas construções de Paraty a caminho da pensão barata, quase na entrada da cidade, ao lado do boteco. Um pouco de apreensão tomava conta do ar, os passos acelerados e em silêncio tinham motivo: a preocupação com o nosso companheiro Chapolin sozinho na rua! Mas eu nem imaginava o quanto meu Gurgel era capaz de atormentar aquele caiçara que tinha medo de assombrações, fantasmas e outras entidades.

O jornalista Cicero Lima e seu Gurgel em Visconde Mauá (RJ) - foto Marco Ponzio


Há, desculpe, ainda não o apresentei. O Chapolin era meu Gurgel vermelho – daí o nome – mas ele tinha algo do herói como aquele criado pelo mexicano Roberto Bolaños. Não era só um carro, ele tinha alma! Quando precisava de uma carona, carregar barras de ferro ou um sofá e um guarda-roupa (como eu fiz), podiam contar com o Chapolin Colorado: “não contavam com minha astúcia”.

                          Alma & fantasma

Ao virar a esquina, o alívio foi imediato. Lá estava o Chapolin, todo molhado inclusive com a típica poça que se formava na capota onde a água se acumulava. Tudo bem nada me incomodava naquele carro, ele podia tudo, era como um amigo.

- Vamos tomar uma? Disse o Marcão.

- Claro, agora estamos tranquilos!

Ao botar o pé no boteco, a dona do bar cerrou os olhos em minha direção, apontou com dedo e decretou com um certo alívio.

- O carrinho é dele!

Eu e o Marcão nos olhamos em entender o que aconteceu enquanto um bêbado veio na minha direção. Estendeu a mão o hálito de quem misturou pinga, peixe e cerveja, impregnou no ar junto com as palavras:

- Seu carro é mal axombrado, tem fantaxmadrento, ele piscou o farol prá mim... Várias vexes, eu fui lá, e não tinha ninguém!!!

 Bêbados e crianças

Tenho um ditado que sempre lembro: Deus protege os bêbados e as crianças, fora isso, sou um cara “de boa” e ainda brinquei com a situação. “Sério? Vamos ver!!!” Fui até o carro, para valorizar o alerta do cidadão que, apesar do estado etílico, parecia convicto de que algo sobrenatural se apossara do meu Gurgel. Nada havia de errado, o botão do farol estava desligado, voltei para o bar e dei o caso por encerrado.

“Não acredita é problema seu, eu tô esperando faz um tempão, precisava avisar, agora posso ir embora” e saiu cambaleando pela rua...

Cortando as montanhas de Minas Gerais rumo ao litoral do Rio - foto Marco Ponzio

Cerveja vai, sardinha vem, caipirinha e boas risadas foram o tempero daquelas férias. A viagem passou por Monte Verde, Tiradentes (MG), depois rumamos para Visconde Mauá e descemos para Angra dos Reis e, finalmente, Paraty ambas no litoral do Rio de Janeiro. 


Nosso trajeto foi feito, preferencialmente, por estradas de terra. Sem pressa, sem capota e com um isopor repleto de latinhas de cerveja, sempre com estoque full , inclusive gelo. Nas montanhas só dava o Chapolin passando pelas estradinhas de terra ao som da guitarra do Rory Gallagher e das latinhas sendo abertas. Também tinha salame e copa que o Marcão fatiava na tábua sem ligar para o balanço do Chapola. Férias sensacionais, dias inesquecíveis!

O bebum tinha razão

De volta a São Paulo e à rotina da redação de quadrinhos na Editora Globo. Levamos os filmes para revelar (em 10 x15, claro) e mostramos as imagens da aventura para os amigos.  A galera da redação pirou nas histórias, e deu muita risada com o caso do Gurgel mal assombrado.

A vida é cheia de surpresas e o que vou contar aqui serviu de lição para mim e espero que o ajude a acreditar nos bêbados. 

Uma noite estava dormindo na casa da minha mãe, perto do Horto Florestal – Zona Norte de São Paulo – e fui acordado pelo barulho dos trovões. Os raios clareavam o céu e a chuva caia sem dó. Acabou a energia elétrica e a escuridão tomou conta da casa. 

Em meio aquele cenário assustador, um facho amarelo bateu na parede. A luz fraca e intermitente, acendia e apagava surgindo por trás do vidro da janela. Enquanto isso, minha cadela Laika, latia sem parar. O que poderia ser?

A Laika cuidando do Chapolin na casa da minha mãe, o carro piscou numa noite escura

Levantei para ver o que era. Para minha surpresa, o Chapolin piscava os pequenos faróis redondos como se quisesse chamar atenção. Peguei o guarda-chuva e sai no quintal, levantei a janelinha lateral e o botão do farol estava desligado. Tive medo e lembrei do bêbado de Paraty, será que uma assombração realmente morava naquele jipinho?

Não ria, nem tenha medo, para tudo há uma explicação e ela é simples. Quando chovia muito, no caso das tempestades, a água escorria pelo para-brisa e entrava no porta malas dianteiro. Como o Chapolin já era bem velhinho – ano 1976 – as borrachas ressecadas e não conseguiam conter o fluxo de água que atingia os contatos elétricos e “fechava a corrente”. O farol ligava e desligava sozinho, por conta de um simples curto circuito. 

Por muitos anos pensei em voltar até Paraty, achar o bêbado, contar a verdadeira história do Fantasma no meu Gurgel e dizer que ele tinha razão. O tempo passou e não tive essa chance, como dizem os espanhóis “Não creio em bruxas, mas que elas existem, existem”. Nunca mais duvidei de fantasmas e assombrações que piscam o farol dos carros nas noites de tempestade.